25/02/2007

Resenha entrevista Will Hutton

A sombra do dragão

São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2007Em entrevista à Folha de São Paulo , Will Hutton afirma que o tamanho da população pobre "condena" a China a crescer, diz que a União Européia atingiu seu limite e avalia que Lula aplicou melhor os preceitos da Terceira Via do que FHC

MARCO AURÉLIO CANÔNICO
DE LONDRES

O contínuo crescimento econômico que transformou a China na favorita ao título de império do século 21 é ancorado em uma base frágil que irá se romper, pois é minada pelo controle centralizado do corruptoPartido Comunista Chinês. As potências ocidentais, divididas entre a admiração pela pujança econômica e o medo da força exportadora que invade seus mercados, são "imperdoavelmente ignorantes a respeito dasfraquezas da China". Essa é a tese que o jornalista e sociólogo inglês Will Hutton defende no recém-lançado "The Writing on the Wall - China and the West in the21st Century" (Escrito na Muralha -China e o Ocidente no Século 21, ed. Little, Brown, 432 págs., 20 libras, R$ 82). Formado em ciências econômicas e sociais pela Universidade de Bristol, Hutton foi editor de economia do jornal "The Guardian" e editor-chefe do dominical "The Observer", do qual é atualmente colunista. Ele é também um dos idealizadores da Terceira Via [leia texto na próxima entrevista] e um dos principais mentores da política econômica do governo trabalhista de Tony Blair. Falando à Folha por telefone, Hutton afirma ter lido "mais de mil referências bibliográficas" para formar seu juízo sobre a China, complementando o trabalho com três visitas de alguns meses de duração. Na entrevista, ele também analisa criticamente o governo Blair e afirma que o presidente Luiz InácioLula da Silva representa melhor a Terceira Via do que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.FOLHA - Em seu novo livro o sr. parece ir contra a atual euforia em relação à China. É preciso relativizar o crescimento que o país tem obtido?
WILL HUTTON - É claro que o crescimento da China é impressionante, sua população é um quinto da humanidade, 800 milhões deles vivendo no campo, em terrenos mínimos, com produtividade baixa. Se eles se mudam para cidades e passam a fazer algo que seja minimamente útil, o PIB cresce inevitavelmente, e foi isso o que aconteceu. Mesmo sob Mao[Tse-tung] o PIB cresceu 4,5% ao ano, entre 1949 e 1976. É muito difícil para a China não crescer.FOLHA - O sr. argumenta que o Ocidente não compreende a ameaça que a China representa, o que pode ter conseqüências graves.
HUTTON - Sua economia é muito vulnerável, é basicamente uma sub-contratada do Ocidente. Ela é feita de falsificações e imitações de produtos ocidentais, há pouca inovação. Isso pode mudar, mas não hásinais no momento, pois a infra-estrutura do país é muito pobre. A China não tem nenhuma marca entre as cem maiores do mundo, tem apenas uma empresa entre as 300 maiores de pesquisa e desenvolvimento. Nalista das 500 maiores empresas do mundo da "Forbes" há 20 chinesas, mas todas são estatais que, se tivessem a contabilidade registrada ao modo ocidental, estariam quebradas. A inflação é outra preocupação constante. É preciso colocar o crescimento em proporção. A posição da China é muito instável, há inquietação social, greves cada vez mais numerosas, desigualdade de classes, e o Partido Comunista não tem uma ideologia viável que convença os líderes do partido e menos ainda a população em geral.FOLHA - E que conseqüências a instabilidade chinesa pode ter para o resto do mundo?
HUTTON - Para o Ocidente, é necessário uma China em crescimento que seja governada não por um partido único, mas de acordo com as instituições da democracia, melhor dizendo, do iluminismo: imprensa,Judiciário e universidades independentes, servidores públicos e gerentes sendo responsabilizados por seus atos, revisão independente em pesquisas científicas... Enfim, o tipo de coisa que Brasil e Índia [que formam o bloco Bric dos emergentes, com China e Rússia] têm.FOLHA - Mas Brasil e Índia também têm grandes desigualdades sociais, que o sr. diz, no caso da China, serem incompatíveis com o conceito de livre mercado.
HUTTON - A desigualdade social é menor no Brasil do que na China, pelas estatísticas oficiais. Acho que ela é um problema gigante e crescente na China, e o governo sabe disso. [O presidente] Hu Jintaoprometeu uma política de "desenvolvimento harmonioso", tentando reduzir os impostos dos camponeses, melhorar os serviços de saúde e de educação no interior. Há muitos trabalhadores que são ilegais porque as pessoas precisam de autorização para mudar de uma cidade para outra, e muitos acabam indo para as grandes cidades costeiras, onde há trabalho, sem essa licença e se tornam migrantes ilegais. Eles deveriam ter o direito de trabalhar. E esse tipo de coisa, que constrói a desigualdade chinesa, é algo muito complexo.Em todo lugar da China há controle de pensamento, controle social e político... O partido está em todo lugar. Em cada organização, seja um jornal, uma empresa, um sindicato, o comitê dos comunistas faz parte do comando, direcionando as políticas. Se alguém quer protestar contra as desigualdades, não consegue. Responsabilizar um político por alguma coisa, como a poluição ambiental ou a falta de direitos para oscamponeses, é impossível. Muita gente não entende, e imagino que seus leitores também nãoconseguiriam entender, o desamparo que os chineses sentem e o desespero que isso provoca.FOLHA - O sr. vê semelhanças entre a China atual e a União Soviética?
HUTTON - Não, a União Soviética teve uma economia muito menos bem-sucedida do que a chinesa. Na China, a transição foi organizada de forma muito sagaz. O que aconteceu na URSS foi que não apenas [o ex-líder Mikhail] Gorbatchov mas também o partido perceberam que não havia uma sociedade comunista, mas uma cleptocracia que conduzia uma economia fracassada, que não poderia alcançar a dos EUA e que, porisso, teria de mudar. Os chineses adotaram a política das Três Representações [desenvolvida por Jiang Zemin, líder do PC chinês entre 1989 e 2002]: a China não estava mais construindo um regime comunista,mas uma economia de mercado socialista, direcionada para o desenvolvimento harmônico de acordo com linhas confucianas. Assim, o PC não representava mais os trabalhadores e camponeses, mas todos os elementos da sociedade. São duas maneiras completamente distintas de dirigir um país. A razão para a mudança, ainda que tenha havido alguma pressão social das camadas inferiores, foi o fato de o partido não acreditar mais no sistema.FOLHA - No livro o sr. argumenta que a China não faz um socialismo de mercado, mas um "leninismo corporativista". O que seria isso?
HUTTON - O regime chinês é leninista no sentido de que o partido segue o ditame de Lênin de monopolizar o controle político, econômico e social. E é corporativista porque toda a atividade econômica é submetida a uma coordenação central, da qual nenhum dos atores daeconomia, mesmo aqueles mais humildes, consegue escapar.FOLHA - Ou seja, o país não está se movendo na direção do capitalismo, como o Ocidente acredita?
HUTTON - Não no sentido em que definimos o termo. Na China não há direito a propriedade privada. Só um pequeno número de empresas, operando na Bolsa de Xangai, é privado. Não há competição, do modo como a entendemos no Reino Unido ou no Brasil.FOLHA - O sr. é otimista em relação ao futuro da China?
HUTTON - Acho que o atual modelo econômico não é sustentável, então sou otimista em relação às mudanças que terão de ser feitas. Não sei, porém, se elas virão de uma maneira pacífica ou com brigas políticas e crise econômica. Mas estou seguro de que a China emergirá dessas mudanças tendo desenvolvido estruturas políticas. Está acontecendo um iluminismoasiático em lugares como Coréia do Sul, Taiwan e Índia, e a China vai se juntar a eles.FOLHA - Episódios como a invasão do Iraque e a guerra ao terror não tornaram o Oriente mais reticente em relação à alardeada democracia ocidental?
HUTTON - Não creio que documentos como a Declaração Universal dosDireitos Humanos das Nações Unidas sejam questionáveis por serem ocidentais, acho que se aplicam a todos os povos. Eu penso o mesmo sobre o iluminismo: tornar os políticos responsáveis por suas ações, adotar direitos constitucionais, como liberdade de debate e de discurso, dar padrões mínimos de qualidade de vida são demandas universais -e não apenas ocidentais.FOLHA - Como ideólogo da Terceira Via e mentor dos novos trabalhistas britânicos, que avaliação o sr. faz dos quase dez anos do governo de Tony Blair?

HUTTON - Há prós e contras. A política externa tem sido um fracasso, seja no Oriente Médio, no combate ao terrorismo, em relação à União Européia ou no apoio ao presidente dos EUA, George W. Bush, e à invasão do Iraque. Foi uma política mal concebida e é a principal fraqueza de Blair. Ele também não fez quase nada contra a desigualdade no Reino Unido, não alterou as estruturas do capitalismo britânico. Permitir aos ricosficarem ainda mais ricos não foi muito inteligente, e os trabalhistas pagaram caro por isso. Mas apóio diversas políticas essenciais que ele adotou, como a reforma do serviço público. Ele esteve certo ao quebraralguns monopólios públicos em favor de uma pluralidade de instituições. Blair também fez muito pelo debate sobre políticassociais, exigindo responsabilidade daqueles que recebem benefícios do Estado. E há diversos pequenos avanços que nunca aconteceriam sob um governo dos conservadores, como as políticas de igualdade para os gays, os grandes gastos com portadores de deficiências físicas, medidas que sãomuito progressistas. Ele também fez diferença na questão da mudança climática, que seu governo levou a sério.FOLHA - O que o sr. achou do recente veto do governo britânico à entrada de trabalhadores da Romênia e da Bulgária, que ingressaram na União Européia em janeiro passado?
HUTTON - No mundo todo há uma espécie de regressão em termos de abertura. Vivemos em tempos conservadores, vocês passam por isso noBrasil também.Quando o Reino Unido abriu suas portas para os trabalhadores do LesteEuropeu [com a entrada de dez países do bloco na UE, em 2004], recebeu mais de 600 mil imigrantes. Com a entrada da Romênia e da Bulgária,outras centenas de milhares poderiam vir.O Reino Unido tem sido muito mais liberal, nesse aspecto, do que aAlemanha e a França, por exemplo. Não acho que o governo Blair deva ser criticado por isso.FOLHA - Ainda há espaço para o bloco crescer?
HUTTON - Não, acho que precisamos digerir os membros que já temos, oque já é suficientemente difícil. Não acho que a Turquia vá se juntarà UE nos próximos 25 anos.FOLHA - O sr. visitou o então presidente Fernando Henrique Cardoso em1999 e lhe fez elogios. Como compara seu governo com o atual? HUTTON - Fiquei impressionado com Lula, ele é um presidente pragmático. Paradoxalmente, ele tem sido mais bem-sucedido ao implementarpolíticas da Terceira Via do que FHC (risos).
Com Hutton, 3ª Via ficou midiática

Criada no início dos anos 1990, a Terceira Via tem em Anthony Giddens seu principal teórico e foi endossada por políticos como o premiê britânico -e demissionário- Tony Blair e o ex-presidente dos EUA Bill Clinton. Mas seria com Will Hutton que o conceito ganharia dimensão midiática.Entre suas características está o "consenso de centro", em lugar da divisão direita-esquerda. Não rejeita o Estado de Bem-Estar, como os liberais, nem o adota, como os social-democratas, mas propõe um modelo de "investimento social".


Rui Marques

Um comentário:

G disse...

Parabens pelo blog. Qualquer coisas estamos por ai.