Diplomacia
Ordem e Desordem no Mundo
Henry Kissinger
O ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, um reconhecido intelectual, com ampla formação histórica e política, tem dedicado os seus últimos anos de aposentadoria a publicar não só suas memórias como também um longo tratado sobre as relações diplomáticas da história ocidental dos últimos trezentos anos.
O Nascimento da Razão de Estado
"É coisa diferente o ser homem de bem segundo Deus e segundo os homens (...) Estas diferentes probidades são para desejar nos conselheiros do Estado; mas ainda é incerto se aquele que tem todas as qualidades exigidas pela do mundo tenha também ordinariamente aquelas que o tornam homem de bem diante de Deus."
Cardeal Richelieu - Testamento Político- circa 1642
O cardeal Richelieu, fundador da diplomacia moderna
Em pleno andamento da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), o cardeal Richelieu, ministro de Luís XIII da França, convenceu o seu soberano a ignorar a religião em que fora batizado, a católica, e aliar-se com os ímpios protestantes. O motivo disso, segundo o astuto cardeal, era que motivos mais fortes, as raisons d'état, assim o determinavam. O raciocínio do ministro era claro e bem objetivo. Um império poderoso como o dos Habsburgos, ainda que católico, nas vizinhanças da França, cercando-a de quase todos os lados, assemelhava-se a um garrote no pescoço do seu monarca. Era a luta de Laocoonte contra a grande serpente. Richelieu sabia que essa política devia ser executada ainda que fosse "contra o sentir de todo o mundo e contra os meus sentimentos particulares". Como ele registrou no seu Testamento, nem sempre aquele que pousa bem aos olhos de Deus e segue a sua religião, serve melhor ao Estado.
Um Grande Tratado de Diplomacia
Bismarck, a construção conservadora
Para Henry Kissinger, eis o nascimento do estadista moderno. Para ele, Richelieu é o primeiro "capaz de se desfazer das travas morais e religiosas do período medieval", em favor do Estado-nação (o que em nada difere do que Maquiavel dissera uns séculos antes sobre como devem agir os príncipes). Porém Diplomacia (Diplomacy, N. Iorque, 1994), o livro do prof. Kissinger, está longe de reduzir-se à dura lógica do florentino (*). É, antes de tudo, um impressionante tratado histórico-diplomático de mil páginas, que abarca, ainda que na ótica de um conservadorismo assumido, numa ambiciosa síntese, praticamente todos os conflitos e concepções da diplomacia moderna. Cobrindo os acontecimentos desde o século XVII até o presente: do cardeal Richelieu ao presidente Ronald Reagan. Nele desfilam, entre inúmeros outros, Metternich e Castlereagh, Napoleão III e Bismarck, Wilson e Clemenceau, Stresemann, Briand e Chamberlain, Hitler e Stalin, Roosevelt e Churchill, Kennedy e Krushev, Johnson e Ho Chi Min, Nixon e Brejnev, Reagan e Gorbachev, e, como não poderia deixar de ser, reserva-se um capítulo especial para a atuação de Kissinger com Le Duc Tho nos acordos dos anos de 1970 para tentar encerrar a matança no Vietnã
Doutrinas Rivais
Frustram-se os que nele procurarem intrigas, acreditando ser a diplomacia uma arte de tipos maliciosos, de voz aflautada e gestos adamados. Em cada um dos seus 31 capítulos, verdadeiras aulas, o ex-assessor do governo Nixon expõe exaustivamente as doutrinas colidentes que marcaram época. Atentando-se, de uma maneira especial, para as páginas onde se encontram as divergências entre o "estadista guerreiro" Theodor Roosevelt, para quem a guerra era natural, e o "sacerdote-profeta" Woodrow Wilson, que a via como coisa de gente degenerada. A perpétua desavença entre o "real" e o "ideal". Evidentemente não encontra causas predominantemente morais ou culturais para explicá-las.
Equilíbrio de Poderes versus Sociedade das Nações
Símbolo da ONU
Os desacertos entre americanos e europeus, no século XX, são exemplares. Os europeus, por força das injunções do passado, defendiam o equilíbrio de poderes, no qual cada nação armava-se e procurava no cenário internacional estabelecer alianças que a protegesse. Os Estados Unidos, por seu lado, sem sentirem-se ameaçados do mesmo modo, viam no equilíbrio de poderes dos europeus, que Wilson chamava com desprezo de "rivalidades organizadas", um sistema perigoso, como se fosse uma pilha de lanças e armas amontoadas ao seu lado, que, ao se desequilibrar, terminava de alguma forma desabando sobre os seus interesses. Daí defender uma solução como a Sociedade das Nações em 1919 e, em sua nova forma, a da ONU, em 1945. Se as discórdias mundiais pudessem ser abafadas ou arbitradas por uma grande assembléia, menores seriam os riscos de repetir-se as desgraças de 1914-18 e de 1939-45, permitindo aos americanos continuarem pacificamente usufruir sua prosperidade.
Um Novo Sistema Planetário da Diplomacia
O conhecido conservadorismo de Kissinger mantém-se na sua filosofia da história. A derrocada do sonho do império cristão universal, registra ele, assinala o fim do cosmo medieval, que girava ao redor do imperador do Sacro Império e do Papado. Daí derivou o moderno sistema planetário dos Estados-nacionais, acertado na Paz de Westfália em 1648. Cada reino, a partir de então, como um agente autônomo, tratou da sua própria segurança, provocando a insegurança dos demais. As guerras e as insurreições então se sucederam numa escala cada vez mais destrutiva. Cada abalo bélico ou revolucionário exigia uma reconstrução. Dessa forma, o grande estadista ou diplomata, tal como Metternich e ele mesmo, é o que reconstrói a ordem, não se importando se ela merecia sobreviver ou não, se correspondia a justiça ou não.
Westfália, o primeiro tratado moderno (1648)
Fascinado por Metternich
Metternich mas não Talleyrand
Numa época em que viveram Robespierre, Napoleão Bonaparte e Talleyrand, Kissinger reforça a sua admiração irrestrita - manifestada anteriormente na sua tese de doutoramento de 1957, O Mundo restaurado (A World Restored) -, por um diplomata de salão, o arquiconservador príncipe Metternich, cuja fatuidade até Balzac, que também lhe foi simpático, em reiteradas oportunidades registrou. Sem esquecer-se da sua indigna fuga de Viena durante a Revolução de 1848, parece que travestido de mulher. De certo modo é explicável: Kissinger viu-se como uma versão do século XX de Metternich, um conservador tendo que operar contra uma potência que pregava a subversão revolucionária: o austríaco contra a Revolução Francesa de 1789, ele contra a Revolução Russa de 1917
Velho Guerreiro-Frio
G. Kennan, mentor da guerra fria
O desconforto do leitor projeta-se ainda num outro aspecto. Esperava-se que com o final da guerra fria - o livro foi publicado cinco anos depois da queda do Muro de Berlim -, Kissinger revisasse criticamente a política de "contenção" (Containment), formulada pelo embaixador George Kennan em 1947, adotada pelos Estados Unidos no após-guerra. Ao demonizar e exagerar o perigo soviético, a política da "contenção" ao comunismo conduziu o mundo não só a uma obscena e imoral falsificação de tudo que foi possível, como provocou um gasto exorbitante em armamentos (mais de U$ 17 trilhões entre 1948-88), por pouco não provocando entre os EUA e a URSS a guerra das guerras: a guerra termonuclear. Kissinger, como um bom veterano guerreiro-frio, ainda a endossa.
Império é o do russos
Império é só o soviético
Há, naturalmente, certas excentricidades ideológicas. A palavra "império", no livro, é singularmente reservada pelo autor ao dos russos. Imagina-se que para Kissinger os Estados Unidos, com suas forças armadas espalhadas por todos os continentes e por todos mares e oceanos do globo, sejam uma espécie de associação filantrópica - um desinteressado exército da salvação bem intencionado -, apenas preocupados em levar os direitos humanos aos quatro cantos do mundo. Confirma assim um dos principais defeitos da concepção diplomática da história: a sua olímpica indiferença pelos interesses financeiros, industriais, comerciais e tantos outros que formam o reino da materialidade. Como se aos diplomatas, gente fina de salão, lhes vexasse discutir tais coisas vulgares.
O Homem da Détente
Kissinger como Narciso
Nada disso empana a imponência do livro e o fascínio narrativo do autor. É uma oportunidade rara privar-se com uma literatura desse porte. Não se trata só de um ensaio acadêmico, mas de um depoimento de um intelectual que alçou-se ao poder dos poderes. Como assessor presidencial, celebrizou-se como um dos arquitetos da "détente" com os comunistas, ainda que tivesse que enfrentar os "falcões" do Congresso, do Pentágono e da Casa Branca, que o consideraram "traidor". De certa forma é lamentável, do ponto de vista da confraria intelectual, que esse imenso talento seja hoje desperdiçado na prosaica ocupação de lobista internacional.
(*) Henry Kissinger, Diplomacia, Livraria Francisco Alves, RJ.
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