O formador
Antonio Candido , que influenciou gerações de críticos, relança seu
clássico "Formação da Literatura Brasileira" e defende o rigor e a
clareza do pensamento
Júlia Moraes/Folha Imagem
O crítico Antonio Candido, que relança "Formação da Literatura
Brasileira", na biblioteca de sua casa, em São Paulo
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
O filósofo Paulo Arantes e o crítico Roberto Schwarz estão entre os
que chegam a comparar sua importância na crítica literária e no
pensamento social brasileiro à de Machado de Assis na literatura.
Walnice Nogueira Galvão, professora titular de literatura na USP,
considera que o paralelo ainda não expressa a estatura de Antonio
Candido, 88.
Professor de gerações dos mais importantes críticos literários e
culturais do país, Candido acompanha há dois anos a reedição de seus
livros pela editora Ouro Sobre Azul, projeto coordenado por sua filha
Ana Luisa Escorel.
No final deste mês, chega às livrarias do país a principal obra de
Candido, "Formação da Literatura Brasileira". Editado pela primeira
vez em 1959, o livro procura dar conta da formação de um "sistema
literário" no país, nos séculos 18 e 19, a partir da assimilação de
influências estrangeiras, cada vez mais filtradas pela constituição de
um conjunto mais denso de obras, de autores e de um público leitor no
Brasil.
Já ali aparecia a articulação sofisticada entre sociedade e
literatura, marca do crítico. Por conta desta capacidade de análise,
os escritos de Candido também deram contribuições decisivas à
compreensão da sociedade brasileira.
Na entrevista a seguir, Candido fala de alguns aspectos de seu
trabalho, como a forma da relação entre condições sociais e obras
literárias, e a simplicidade e clareza de sua escrita.
O professor aposentado da USP respondeu às questões em oito páginas
datilografadas. Ele diz que prefere não usar vocabulário técnico ou
conceitos sociológicos por, "no fundo", não gostar "de termos
difíceis, como os que predominaram no tempo da moda estruturalista".
"Freqüentemente eles são um jeito de dar aparência profunda a coisas
simples", declara.
Ele afirma privilegiar a "organização interna" dos textos, e diz que o
estudo da relação entre a obra e o meio social deve ser feito apenas
quando "o texto assim exige".
FOLHA - O sr. usa como epígrafe de seu livro "O Discurso e a Cidade"
uma frase de Calvino, em que o escritor italiano diz que não se deve
confundir a cidade com o discurso que a descreve, embora haja sempre
uma relação entre ambos. É possível dizer que essa relação (e as
formas dessa relação) entre sociedade e literatura está no centro da
sua obra e é o que a move?
ANTONIO CANDIDO - De uma parte do que escrevi, sim. Esta frase serve
de epígrafe à primeira parte do meu livro, que trata de romances
vinculados à realidade social. Ela precisa ser completada pela da
segunda parte, que analisa textos marcados pela fantasia, de um ângulo
não-realista, e é uma frase de Verdi: "Copiar a realidade pode ser uma
boa coisa; mas inventar a realidade é melhor, é muito melhor". Um
conceito completa o outro, ambos registrando os pólos da criação
literária e, portanto, do trabalho analítico, o que me levou a optar
pelo que denomino "crítica de vertentes", ou seja, ajustada à natureza
do texto e privilegiando a sua organização interna, não os vínculos
externos. Não se trata, portanto, de impor nem rejeitar em princípio o
estudo da relação entre a obra e o meio social, mas de praticá-lo
quando o texto assim exige. Em geral tenho sido caracterizado com base
na posição que assumi no começo da minha atividade, quando era crítico
deste jornal e escrevia artigos não só privilegiando a dimensão
social, mas, sobretudo, muito politizados. Com o tempo acho que
equilibrei melhor os meus pontos de vista, mas conservei o interesse
pelos nexos sociais da literatura. Quando se trata destes, procuro não
fazer análises paralelas, isto é, descrever as condições sociais e
depois registrar a sua ocorrência no texto, o que pode levar, por
exemplo, a encarar a criação ficcional como um tipo de documento. Isto
pode ser legítimo para o sociólogo ou o historiador, não para o
crítico. O que procuro é, quando for o caso, compreender como o dado
social se transforma em estrutura literária.
FOLHA - O modo de abordar essa relação já estava plenamente
desenvolvido pelo sr. quando escreveu "Formação da Literatura
Brasileira" ou há diferenças e desenvolvimentos entre esse livro e os
ensaios que escreveu nos anos 60 e 70, como aqueles sobre "O Cortiço"
e "Memórias de um Sargento de Milícia"?
CANDIDO - O preparo de "Formação", publicado em 1959, durou 12 anos,
entre outros trabalhos. Um dos meus pressupostos era que a literatura
é sobretudo um conjunto de obras, mais do que de autores ou fatores.
No caso brasileiro, me pareceu que a análise das obras em perspectiva
histórica deveria atender tanto à singularidade estética de cada uma
quanto ao seu papel na formação da literatura como instituição regular
da sociedade. Tratava-se, portanto, de averiguar quando a conhecida
trinca interativa "autor-obra-público" se definiu e se prolongou no
tempo pela "tradição", constituindo um "sistema", em contraste com as
"manifestações literárias" precedentes. Isso me parece ter ocorrido
mais ou menos entre 1750 e 1880, entre as Academias de meio-século e
Machado de Assis. Por isso delimitei como campo de estudo a Arcádia e
o Romantismo.
Eu já tinha publicado ensaios sobre o romance como expressão de classe
e do momento, mas esses ensaios não focalizavam a estrutura, como os
que menciona. De fato, eu não tinha ainda percebido com clareza que o
essencial no tocante às relações da ficção com a sociedade era
demonstrar (não indicar apenas) de que maneira as condições sociais
são interiorizadas e se transformam em estrutura literária, que pode
ser analisada em si mesma. É o processo que denominei "redução
estrutural". Por outro lado, ainda não tinha refinado a análise de
textos poéticos.
Creio que o longo trabalho de preparo da "Formação" me amadureceu em
ambos os sentidos, podendo-se tomar como eixo os anos de 1959 e 1960.
Foi a partir de então que preparei muitas análises de poemas para os
meus cursos, algumas das quais estão em "Na Sala de Aula" e em outros
livros. Foi também naquela altura que publiquei o primeiro ensaio do
tipo a que se refere, sobre estrutura literária e função histórica,
analisando o "Caramuru", de Santa Rita Durão.
FOLHA - Há uma característica interessante em sua obra que é a de não
fazer uso direto e transplantado de conceitos sociológicos, de teoria
literária ou de filosofia na análise das obras. O raciocínio é exposto
com clareza e sem uso de recursos "esotéricos" ou "técnicos". Isso foi
uma decisão consciente desde o início do seu trabalho? O que o levou a
fazer essa escolha?
CANDIDO - Não há razão para evitar os termos técnicos quando são
necessários, mas sempre que possível prefiro usar a linguagem
corrente. Digamos que é mais um modo de ser do que uma decisão. Quando
era moço li um livro do antropólogo inglês Evans-Pritchard que me
confirmou nesta tendência. Ele dizia que a antropologia não é ciência,
mas disciplina humanística, de modo que deve usar a linguagem comum.
Foi o que procurei fazer quando era assistente de sociologia, à qual
estendi o conceito, e foi o que sempre fiz nos estudos literários.
Além disso, tenho o hábito didático de ser o mais claro possível,
reconhecendo que isto pode ser fator de deficiência, pelo risco de
simplificação indevida.
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