Uma exposição revisa a história acidentada
e irregular das constituições nacionais
Jerônimo Teixeira
A ilusão de que novas leis bastam para recriar o país é recorrente no Brasil. Ela se revela de maneira cristalina na história acidentada de nossas constituições – uma história que acaba de tornar-se objeto de uma mostra curiosa. Recém-inaugurada em Brasília, a exposição As Constituições Brasileiras – organizada pela Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), por iniciativa da ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal – espalha-se emblematicamente pelas sedes dos três poderes, ocupando salas no Congresso, no Palácio do Planalto e no STF. Da Constituição do império, outorgada em 1824, à atual, promulgada em 1988, ela percorre todas as sete cartas que já regeram o país, exibindo quadros, documentos, fotos, itens pessoais de constituintes. E demonstra que, em sua inconstância, as constituições brasileiras refletem as hesitações e os desvios da democracia no país. A cada ciclo da história, uma Constituição era elaborada ou outorgada como o ato fundador de uma nova era. A Constituição, porém, é um marco institucional básico – não promove, por si só, revoluções sociais ou reformas estruturais. Documento de longo curso, tampouco deveria servir para responder à conjuntura imediata – mesmo assim, os constituintes brasileiros não raro tentaram ajustar problemas circunstanciais na carta maior da nação.
A primeira Constituição do país já nasceu sob o tacão discricionário: o imperador dom Pedro I desgostou-se com a Assembléia Constituinte, dissolveu-a e outorgou uma Constituição que previa, além de Legislativo, Executivo e Judiciário, um quarto poder, chamado Moderador, concentrado na pessoa do monarca. Derrubada apenas na proclamação da República, em 1889, a Constituição imperial foi a mais duradoura da história brasileira. Essa estabilidade legal tem sua raiz em uma certa pasmaceira política: o Brasil era uma sociedade oligárquica, sem grande participação política do grosso da população. É significativo que a Carta não faça referência direta ao fundamento econômico do império: a escravidão. Limita-se a reconhecer os libertos como cidadãos brasileiros.
O Poder Moderador seria extinto pela República, cuja primeira Constituição foi promulgada em 1891, em uma assembléia presidida pelo senador – e futuro presidente da República – Prudente de Morais. A Carta resultante tinha certa inspiração americana, daí adotar o presidencialismo e o federalismo (embora nos Estados Unidos vigore uma autonomia bem maior para as unidades da Federação). Estabeleceu-se a partir de então uma certa gangorra entre constituições outorgadas pelo Executivo – como no Estado Novo, em 1937, e na ditadura militar (ainda que nesta ela tenha sido formalmente aprovada pelo Congresso), trinta anos depois – e aquelas promulgadas por assembléias (em 1891, 1934, 1946 e 1988). As primeiras são instrumentos de legitimação de governos autoritários. As constituições democráticas, por seu turno, trazem sempre certa marca de irrealidade, um descompasso fundamental com o país e o contexto mundial.
O caso mais flagrante talvez seja o da Carta de 1934, convocada por Getúlio Vargas para pôr panos quentes nos conflitos abertos pela Revolução Constitucionalista de 1932. A doutrina getulista era centralizadora do poder. A Carta promulgada, porém, tinha um espírito liberal, deitando marcos fundamentais dos direitos civis e das liberdades democráticas. Uma coisa não era compatível com a outra. Não estranha, portanto, que a Constituição de 1934 tenha durado apenas três anos. Em 1937, surgia a Constituição ditatorial do Estado Novo.
Acervo Museu da Reública
Promulgação da Carta de 1988: a nova lei máxima queria mandar até nos juros
Com a queda de Getúlio, em 1945, é eleita uma nova Assembléia Constituinte, que retomou as liberdades da Carta de 1934. A Constituição de 1946, porém, vigorou em um período de sucessivas crises institucionais, culminando no golpe militar de 1964. A Constituição da ditadura, de 1967 (radicalmente reformada em 1969), fazia da "segurança nacional" sua palavra-chave. Foi o pretexto para abolir direitos democráticos e centralizar o poder nas mãos dos presidentes militares.
"As constituições brasileiras tendem a incorporar temas que são conjunturais. Não fazem uma distinção clara entre o que é uma política de estado e o que é matéria para políticas de governo", diz José Reinaldo de Lima Lopes, professor de direito da USP e da Fundação Getulio Vargas. Embalada por um ímpeto quase messiânico de restauração democrática, a Constituinte de 1988 é talvez a mais representativa dessa tendência: tentou legislar até sobre a matéria volátil dos mercados financeiros, estipulando um esdrúxulo teto de 12% ao ano para a taxa de juros. Não surpreende que a chamada "Constituição Cidadã" seja hoje uma colcha de retalhos, com mais de cinqüenta emendas. Sua doutrina de base estava equivocada: pretendia não apenas deitar as balizas legais do país, mas orientar o governo e a sociedade em todas as suas instâncias. É uma tendência brasileira antiga, reforçada, nesse caso, pelo exemplo lusitano. "A Constituição de 1988 foi muito influenciada pelo trabalho de juristas como José Joaquim Gomes Canotilho, vinculado à Constituição portuguesa de 1976. Eles acreditavam em uma Carta desenvolvimentista, que fixa metas para o Executivo", diz José Eduardo de Faria, professor do Departamento de Teoria e Filosofia do Direito da USP. "O irônico é que, na época da Constituinte brasileira, Canotilho já estava revisando suas idéias e concluindo que esse modelo não funciona em um mundo globalizado." Esse gosto pelas minúcias acabou engessando o estado brasileiro. As reformas necessárias estão sempre fadadas a esbarrar em impedimentos constitucionais.
O exemplo americano costuma ser lembrado em oposição ao brasileiro. Os Estados Unidos são regidos pela mesma Constituição há mais de 200 anos, e somente 27 emendas foram feitas ao texto original. É uma Constituição essencialista, aferrada aos princípios básicos. A história americana é outra, claro, e não há razão para crer que uma Constituição tão enxuta funcionaria no Brasil. Mas é inegável que o gigantismo constitucional brasileiro tem algo de aberrante. Ao deitar tantas leis que estavam fadadas a ser emendadas ou a se tornar letra morta, a Constituinte de 1988 acabou criando uma cultura de insegurança jurídica. A Constituinte presidida por Ulysses Guimarães deitou as bases da democracia brasileira – mas também legou entraves à sua modernização.
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