27/02/2008

Resenha - Vinte Anos de Crise - Edward Hallett Carr

O período do entre-guerras foi marcado por turbulências e inquietações. A Pri-meira Guerra Mundial, apesar de suas trágicas dimensões, não fora suficiente para dar o golpe de misericórdia na ordem internacional do século XIX, e menos ainda para lançar as bases para uma nova ordem. O livro Vinte Anos de Crise. 1919-1939, de E. H. Carr, publicado no momento em que a Inglaterra declarava guerra à Alemanha em setembro de 1939, apresenta um balanço bastante completo e eloqüente dessa difícil transição de uma ordem para outra, em que padrões tradicionais de comportamento e de percepções deveriam ser abandonados sem que houvesse, contudo, clareza suficiente sobre quais deveriam ser os novos padrões e, conseqüentemente, os meios pelos quais uma nova ordem internacional haveria de se estabelecer.
Escrito no calor dos acontecimentos que precederam o início da Segunda Guerra Mundial e o objeto central da preocupação de Carr era o de compreender e interpretar os inquietantes acontecimentos da política internacional. Entretanto, ao empregar categorias analíticas de uma forma bastante inédita no entendimento dos fenômenos internacionais, sua análise ultrapassou amplamente aquele propósito inicial e acabou por tornar-se um verdadeiro marco na formação do próprio campo de estudo das relações internacionais. Com efeito, E. H. Carr fez parte da geração que estabeleceu as relações internacionais como campo de estudo distinto tal qual conhecemos hoje. Sua motivação inicial tinha por origem os fatos preocupantes de um ambiente internacional ameaçadoramente turbulento, mas sua angústia tornava-se maior ao observar que a inadequação das políticas praticadas derivava em grande parte da total incompreensão a respeito do meio internacional e das forças reais que nele atuavam. Evitar uma conflagração internacional podia fazer parte das preocupações da maioria dos estadistas, todavia esse fato não garantia que esse objetivo seria efetivamente atingido. Carr percebia que na política internacional havia forças que atuavam sobre os atores que, de muitas formas, limitavam ou mesmo condicionavam suas ações. Estava entre aqueles que percebiam que os fenômenos gerados pela convivência internacional tinham peculiaridades que não poderiam ser interpretadas apenas como simples somatórias das ações dos Estados tomados individualmente. [9] Participara da Conferência de Versailles e, assim, acompanhou muito de perto as motivações e as ações dos homens e das instituições que levaram à elaboração e assinatura do Tratado de Paz de Versailles. Além disso, até voltar-se para a vida acadêmica em meados da década de 1930, permaneceu no Foreign Office de onde pode acompanhar, como oficial do Governo, o surgimento e a evolução de várias crises bem como as ações governamentais que tentavam manejá-las. Muitas dessas crises, como a invasão do Ruhr pela França e o colapso da República de Weimar eram conseqüências diretas dos termos do Tratado de Versailles enquanto a incapacidade de ação da Liga das Nações, observava Carr, revelava a incompatibilidade da natureza do meio internacional com a crença predominante, inclusive entre os analistas, de que a simples sistematização de uma ordem jurídica das relações internacionais e a sanção da opinião pública seriam suficientes para banir o uso da força.
Assim, as reflexões de Carr contidas no Vinte Anos de Crise foram também um produto da observação continuada da realidade da política internacional turbulenta, marcada por sucessivas crises que enchiam de perplexidade as mentes pouco acostumadas a padrões em rápida transformação. Nessas circunstâncias, era inevitável que uma mente sensível e atenta como a de Carr se perguntasse angustiadamente o que significava tudo aquilo. O que estava ocorrendo com o Império Britânico? Por que a tentativa de restaurar o padrão ouro fora um fracasso? Por que os acordos de Locarno tiveram tão poucos efeitos sobre a estabilidade internacional? Por que os acontecimentos em regiões distantes haviam se tornado tão importantes para a política internacional? Seriam as elites que teriam se tornado insanas ou as massas é que haviam se tornado incontroláveis? Enfim, para onde o mundo estaria se encaminhando?
As notícias dos acontecimentos, que os jornais divulgavam de maneira cada vez mais febril, ajudavam mais para confundir do que para esclarecer. Tornava-se também claro que as respostas que Carr e a maioria das pessoas preocupadas com as crises procuravam de forma cada vez mais ansiosa, não poderiam ser encontradas nos termos de um tratado ou nas ações de um governante. Perguntas suscitadas pelo ambiente internacional cada vez mais turbulento, como as acima mencionadas, demandavam respostas embasadas em teorias que ligassem os fatos entre si, dando-lhes sentido e orientação. Mais tarde, E. H. Carr iria publicar um pequeno livro intitulado What is History (1961) resultante de suas reflexões sobre essa questão. Nesse livro, Carr argumenta que o historiador não deve restringir-se apenas a localizar e descrever com exatidão os fatos ocorridos. Localizar devidamente os fatos no tempo e descrevê-los com exatidão constituem apenas uma obrigação primária; o verdadeiro historiador, afirma Carr, deve ir além. Deve interpretar os fatos, a começar pela seleção daqueles que julga efetivamente relevantes: “… o fato de César atravessar aquele pequeno riacho, o Rubicão, é um fato da história, ao passo que a travessia do Rubicão, por milhões de outras pessoas, antes ou desde então, não interessa a ninguém em absoluto”, escreve Carr. [10]
Com efeito, desde a Grande Guerra de 1914-18, as notícias sobre os acontecimentos internacionais ganharam espaço nos jornais, mas isto não queria dizer que crises, conflitos e tratados fossem melhor compreendidos. Dessa forma, em grande medida, Vinte Anos de Crise derivava de uma preocupação que se estenderia por toda a sua vida: a de tentar encontrar um sentido para os fatos observáveis e aí buscar as respostas a perguntas como as acima mencionadas. Quando deixou o Foreign Office em 1936 e seguiu para a Universidade de Aberystwyth, no País de Gales, levava consigo, de um lado, vinte anos de observação da política internacional, mas de outro lado, levava também a inquietante percepção de que as tradicionais categorias empregadas na análise e nas práticas que haviam servido tão bem à geração de Lord Salisbury para compreender e agir na política internacional de seu tempo, tornaram-se referenciais pouco seguras para Balfour e, claramente, haviam se tornado totalmente inadequadas para as questões que a geração de Lloyd George estava tendo que enfrentar.
Na verdade, a percepção de que a realidade internacional precisava ser melhor compreendida era compartilhada por muitos daqueles que haviam participado ou simplesmente acompanhado os acontecimentos que fizeram das primeiras décadas do século XX um período marcado por tragédias e perplexidades. O que não estava claro é como essa demanda poderia ser atendida. Pode-se dizer que E. H. Carr teria sido, na verdade, aquele que, em seu tempo, percebeu mais claramente essas circunstâncias e efetivamente fez a síntese mais completa de um entendimento que se consolidava acerca da utilidade, e mesmo da necessidade, de se olhar as relações internacionais sob um prisma científico. Em outras palavras, embora não houvesse clareza e homogeneidade nessa percepção, generalizava-se o entendimento de que os fenômenos internacionais deveriam ser observados e interpretados por meio de estruturas teóricas e que constituíam uma classe de fenômenos suficientemente distinta para justificar a construção de uma nova ciência. Não foi acidental, portanto, o fato de Carr dedicar a primeira parte do livro Vinte Anos de Crise à explicação do “nascimento de uma nova ciência”. [11]
É importante mencionar o fato de que a novidade das iniciativas não estava na preocupação em destacar a importância da reflexão sobre os fenômenos internacionais, mas sim no entendimento de que essa reflexão poderia tornar-se muito mais precisa e articulada se passasse a ser feita com o emprego de métodos desenvolvidos pela ciência. Com efeito, desde a Antigüidade e especialmente a partir dos fins da Idade Média, no mundo ocidental a reflexão sobre as relações entre povos e unidades políticas vinha sendo feita no âmbito da filosofia política. A novidade da preocupação era o entendimento de que a compreensão dos fenômenos internacionais poderia ser aumentada e tornar-se universal com o desenvolvimento de conceitos e categorias de análise seguindo os padrões da ciência social moderna. A particularidade é que muitos dos conceitos fundamentais deveriam ser tomados diretamente de pensadores como Aristóteles, Maquiavel, Bodin ou Rousseau, que haviam vivido séculos antes. A principal razão era o entendimento de que esses filósofos, por terem refletido sistematicamente sobre o homem e a sua natureza, poderiam oferecer pistas mais seguras sobre possíveis elementos universais e atemporais relativos ao comportamento humano. Assim, enquanto na economia, por exemplo, os autores considerados “clássicos” do pensamento econômico estão situados essencialmente a partir da época tida como a do nascimento da própria ciência econômica, isto é, a partir dos fisiocratas, nas relações internacionais, contudo, há mais de uma dezena de autores considerados consensualmente como “clássicos” e que são muito anteriores ao século XX. Nesse particular, a grande diferença entre os fenômenos característicos de cada um desses domínios do conhecimento é que noções centrais para a vida econômica como a de mercado, por exemplo, só emergem efetivamente na modernidade enquanto estado, poder, guerra e paz são fenômenos observados, descritos e analisados desde a Antigüidade.


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