Tempos difíceis
"Autobiografia" de Stuart Mill mostra a rígida formação por que passou um dos principais intelectuais britânicos do século 19
VINICIUS TORRES FREIRE
COLUNISTA DA FOLHA
No seu ensaio de pedagogia natural em forma de romance psicológico, o "Emílio", Rousseau recomenda que o educador deve fazer o possível para não estragar o ser naturalmente bom que é uma criança. Em particular, não deve forçar seu desenvolvimento intelectual e moral precoce. Até os 12 anos, o essencial seria educar sentidos, sentimentos e corpo.
John Stuart Mill (1820-1873), economista, filósofo e maior intelectual público de meados do século 19 britânico, foi posto a aprender grego aos três anos de idade. Aos oito, havia lido Heródoto, Xenofonte, diálogos de Platão e começava a "Ilíada", entre outros.
Dos 8 aos 12, aprendeu a fundo álgebra, mas "apenas superficialmente" o cálculo, enquanto lia poetas latinos e o teatro grego clássico. Aos 13, teve um curso completo de economia -o livro-texto era o de David Ricardo, íntimo de seu pai, e mais "fundador" da economia que Adam Smith.
Rousseau era mau-caráter e abandonou com frieza repulsiva e cruel os próprios filhos, mas um pouco de "Emílio" talvez amenizasse as agruras da juventude de Mill, tanto oprimida como privilegiada pelo esforço obsessivo de seu pai em educá-lo de forma perfeita.
A "Autobiografia", no que tem de mais interessante e essencial, é um ensaio-memória sobre uma formação, uma "paidéia" pessoal. Ou um "Emílio" virado de cabeça para baixo mesclado a uma espécie de "Carta ao Pai" kafkiana, permeado de queixas respeitosas, mas melancólicas e amarguradas, sobre o rigor excessivo e à incapacidade do pai de oferecer-lhe uma educação sentimental e prática.
Mill era depressivo, embora assuma apenas a grande crise dos 20 anos.
Não teve amigos infantis. Foi livrado da "influência corruptora" de outras crianças, "dos modos vulgares de pensar e sentir" e dos "efeitos desmoralizadores da vida escolar".
No entanto, como diria o pavoroso jargão do pedagogismo marxóide de hoje, o pai de Mill pugnava para que o filho "fosse sujeito crítico da construção do próprio conhecimento".
Submetia o garoto a um misto de método socrático e ensino precoce de lógica e exigia autonomia intelectual.
Puritanos progressistas
Além da formação extensiva, que combinava clássicos e o melhor da filosofia e do pensamento contemporâneos, Mill foi criado em um ambiente intelectual de puritanos progressistas.
Além da secura emocional, os melhores de tal tradição compartilhavam um compromisso forte com a honestidade intelectual e com idéias então avançadas (embora muito à inglesa) de verdade, espírito cívico, justiça e liberalismo radical.
O pai de Mill ocupou o segundo cargo mais importante da Companhia das Índias Ocidentais (como seu filho o faria).
De origem modesta, obteve uma bolsa para formar-se pastor na Universidade de Edimburgo, mas era ateu, como o filho.
Eram íntimos de Jeremy Bentham, o filósofo para quem toda política pública deve ter como fim "a maior felicidade para a maior quantidade possível de pessoas". Bentham e os Mill foram publicistas "radicais", adeptos do sufrágio universal, do voto feminino e do fim dos privilégios aristocráticos desde os anos 1810-20.
Dessa linhagem seriam, por exemplo, os intelectuais de alta classe média que fundaram a Sociedade Fabiana, uma vertente do reformismo social inglês que participaria da criação do trabalhismo e fundaria a London School of Economics, entre o final do 19 e o começo do 20.
Mill escreveu o "Sistema de Lógica", e suas reflexões sobre causalidade e indução ainda são objeto de estudo de qualquer aluno de lógica. Escreveu "Princípios de Economia Política" (1848), livro que dominou o ensino inglês da disciplina por quase 50 anos. Trabalhou na Companhia das Índias até sua extinção e depois foi membro da Câmara dos Comuns.
Mill era um democrata radical (mas malthusiano). Chegou a namorar o socialismo e se entusiasmou com as revoluções de 1848 na Europa. Adepto da autonomia das "colônias européias", era porém um patriota imperialista moderado.
Nos anos 1857-58, quando corria a primeira guerra da Independência indiana, Mill escrevia um ensaio sobre a liberdade; não comenta na "Autobiografia" a revolta indiana ou a bárbara opressão britânica.
Não há sexo no livro. Mill esperou a amada por mais de 20 anos, até que ela fosse viúva.
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