Reflexões sobre a derrota da esquerda na eleição francesa
Interesse pela democracia participativa descambou para populismo midiático, mais preocupado com a aparência e o sucesso do que com discurso de "verdade"
Lucas Dolega -06.mai.2007/Efe
Eleitores da socialista Ségolène Royal, lamentam o resultado logo após o anúncio da vitória do conservador Nicolas Sarkozy
RUY FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em artigo anterior, comentei o significado da campanha do candidato vitorioso, Nicolas Sarkozy, e também a do centrista François Bayrou. Neste texto, trato principalmente, embora não só, do percurso da esquerda. Ségolène Royal teve certos méritos, entre os quais, uma abertura às propostas do centro (entre os dois turnos) e um final de campanha descontraído; mas em conjunto decepcionou. Faltou equilíbrio ao aggiornamento da esquerda que ela promoveu (por exemplo, ela propôs enquadramento militar para os menores delinqüentes).
Porém, mais grave do que isso foi a falta de rigor. O que era interesse pela "democracia participativa" acabou descambando, em grande parte, num populismo midiático, mais preocupado com a aparência e o sucesso do que com um discurso de "verdade". O que funcionou mal. Pois se há efetivamente um processo profundo de deterioração da opinião pública, este não eliminou certa exigência de racionalidade ou, pelo menos, de alguma coerência e precisão, na apresentação dos projetos.
(Objetar-se-á que parte da opinião pública acreditou nas mentiras de Sarkozy. Mas estas se fundavam numa ideologia que tem 150 anos e é, a seu modo, "bem articulada" .)
Rigor perdido
Essa deriva viria de dificuldades pessoais da candidata, do seu estilo mais profundo, ou do próprio Partido Socialista? Um pouco de tudo isso. Mesmo se no PS há quem não mereça essa crítica, pode-se dizer que o partido perdeu o pé em termos de uma fundação mais rigorosa das suas posições.
Se a liquidação do que restava das ilusões revolucionárias (incluindo certas hesitações diante dos totalitarismos) representou um progresso muito importante, ela veio junto -infelizmente- com um abandono de todo esforço de reflexão teórica. Um bom exemplo disso foi o qüiproquó entre a esquerda e a direita, a propósito do "valor trabalho". Não sei quem inventou essa bandeira ambígua, incluída no programa da candidata, de resto um bom programa.
O adversário não recusou a bandeira, mas se apropriou dela, acusando ainda por cima a esquerda de ter traído esse ideal com a semana de 35 horas. Ora, seria preciso desmistificar o discurso sarkozista, observando que o candidato jogou com duas significações do termo "trabalho". De fato, "trabalho" se usa no sentido de "trabalhadores", em oposição a "capital" (indicando os capitalistas ou seus representantes).
Mas significa também o tempo ou a duração do trabalho. Ora, se a esquerda sempre defendeu o trabalho no primeiro sentido, ela jamais foi "favorável" a ele no segundo, isto é, nunca pregou a maximização do tempo de trabalho. Sendo assim, a lei das 35 horas não tem nada de "traição". Ora, não só a candidata e seu comando foram incapazes de desmontar esse sofisma sarkozista, mas, fato impressionante: nenhum intelectual foi capaz de fazê-lo.
O discurso de Sarkozy, que se apresenta como novíssimo, é, nos seus fundamentos (ou ausência de fundamentos) o discurso da chamada "economia vulgar" de meados do século 19. Seu mote é mais ou menos o seguinte: "Sem dúvida, defendo a riqueza; mas como a riqueza vem do trabalho, eu sou o candidato do trabalho". O argumento pega porque corresponde ao ar do tempo, além do que, soa como se fosse de esquerda. Mas que haja ao mesmo tempo uma descontinuidade entre riqueza e trabalho ou, dito de outro modo, que, se a riqueza vem do trabalho, ela em geral não vem do trabalho próprio, isso Sarkozy não poderia dizer.
Só que a esquerda também não disse, pelo menos com suficiente clareza, o que -montado o imbróglio -lhe custou caro em termos de hegemonia. Apenas eleito, Sarkozy fez um cruzeiro no iate de um milionário das suas relações. Agora, montou um governo que inclui personalidades de esquerda, o que não deve mudar muito as coisas.
Ségolène 2012
Ségolène prepara desde já sua investidura para as eleições de 2012, contra a vontade dos "elefantes" do PS. Estes foram acusados de jogar perde-ganha durante a campanha, o que, em parte, é verdade. Mas a atitude da candidata em relação a eles foi, também, muito dura.
Antes de saber se o PS tem de ir mais à direita ou mais ao centro, eu diria que ele precisa de mais verdade, isto é, de um discurso rigoroso, estranho ao "populismo da mídia". Este último (como, de outro modo, o "totalitarismo") é um fator negativo determinante, que não elimina a diferença entre esquerda e direita, mas a complica. Há que articular rigor teórico com flexibilidade tática.
O PS deve ir mais à esquerda precisamente no sentido de que se impõe um discurso mais "radical", que não oculte os fundamentos; mas ao mesmo tempo, ele tem de se abrir para o centro, porque, o enfraquecimento da extrema-esquerda exige um leque mais amplo de alianças.
No plano do programa, também seria necessário inovar em várias direções: por exemplo, a questão dos regimes especiais de aposentadoria, ou o da necessidade de ouvir os usuários na deflagração das greves dos transportes, mesmo sendo temas que a direita hiperboliza e explora, são problemas reais a discutir.
No outro extremo, seria importante não esquecer da economia solidária, em particular das cooperativas, assunto sobre o qual, salvo engano, o projeto socialista fez silêncio. A deriva populista midiática de parte do PS, mais a luta implacável entre as diversas alas internas, o imobilismo dogmático da extrema esquerda, o sucesso da aliança do "Loft Story" com o grande capital, que representa o sarkozismo, e cuja vitória teve como base tanto o engano como a perversão dos espíritos, não são augúrios muito favoráveis.
Mas se a vitória da direita foi nítida, ela não foi esmagadora. A esquerda francesa não pode desperdiçar os seus 17 milhões de eleitores.
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RUY FAUSTO é filósofo, professor emérito da USP e vive a maior parte do ano na França
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